Com o tema “Aqui se Cria” a 19ª edição do Minas Trend recebe desfile da grife mineira Doisélles, de Raquell Guimarães, no dia 06 de outubro.
Desta vez, além de levar as peças produzidas pelos detentos da Penitenciária Professor Ariosvaldo de Campos Pires (Juiz de Fora – MG) e do Complexo Penitenciário Feminino Estevão Pinto (BH – MG) para a passarela, o desfile irá contar com a presença da Miss Prisional, Marcella Moreira Gagnani.
O conceito da coleção é “Economia Afetiva” e a trilha sonora ficará a cargo do cantor e compositor paulista Criolo.
Homens tramam a linha, a lã, com mãos firmes. O resultado: peças delicadas, com sofisticação, modelagem e estilo. Tudo começou com ela, Raquell Guimarães, e a mãe, Teresinha Guimarães, no porão da casa do avô em Juiz de Fora. Mas já no lançamento da segunda coleção, Jardim de Areia, em 2009, precisaram aumentar os recursos humanos para atenderem ao mercado externo e, então, veio com muita persistência o início do trabalho com os detentos da Penitenciária Professor Ariosvaldo de Campos Pires, em Juiz de Fora. Raquell, da grife mineira Doisélles, entrou naquele local de paredes frias e piso de cimento batido com passos firmes, na esperança de que daria certo uma produção em tricô e crochê feita por homens, mesmo tendo a convicção de que esse universo é muito feminino.
Deu tão certo que já se passaram oito anos e pela primeira vez a estilistatraz ao Minas Trend uma coleção com muita personalidade. No dia 06 de outubro, às 15h, o público poderá ver no desfile peças imbuídas de relações. “O conceito da coleção é a Economia Afetiva, porque eu sou uma cadeia de relações, que envolve desde os criadores de ovelha, onde tudo começa, até os fornecedores, o Estado, e principalmente homens que com mãos brutas aprenderam a tecer e conseguiram me mostrar que eles têm sim sensibilidade para coisas delicadas. A ideia é criar uma perspectiva coletiva, um coworking por identificação. O meu produto é cheio de fatias, de pessoas que eu entendo que têm uma afinidade estética e afetiva. As relações de trabalho têm que ter envolvimento, ainda mais em um negócio feito à mão”, destaca Raquell.
Na passarela, 18 looks da Doisélles em tricô e crochê terão a malha como pano de fundo. “A dificuldade era fazer o look total da Doisélles, agora a marca incorporou a malha e deu corpo para esse tricô. Eu tinha um acessório, agora é uma marca dos pés a cabeça. Na malha eu respeito à mesma cartela de cor da trama. Serão vistos vestidos longos e mídis, casacos, calças cropped e muitas peças para se inspirar”. A malha foi introduzida à Doisélles há pouco tempo. Raquell iniciou um trabalho de parceria com Marcella Mafra, do Complexo Penitenciário Feminino Estevão Pinto, no Horto, em Belo Horizonte. “Hoje temos doze detentas trabalhando na fábrica, produzindo peças em malha. Algumas chegaram, assim como eu, sem saber o que era uma máquina de overloque. Elas usavam o pedal da máquina e tinham a sensação que estavam dirigindo um “carro de fuga”, assim eram os comentários que eu escutava. E se tornaram perfeitas costureiras. Outras chegavam com alguma experiência. Qualquer das duas situações, o sentimento que eu tinha e tenho é de profundo orgulho”, conta Marcella.
As modelos irão desfilar ao som das músicas “Ainda há tempo”, “Até me emocionei” e “Cartão de Visita” do cantor e compositor paulista Criolo. O artista, expressa os problemas sociais em suas letras e se inspira em histórias reais para compor, então a identificação com o trabalho da Doisélles foi imediata.
Mary Figueiredo Arantes criou a concepção para o desfile com capuzes, coturnos e luvas-protetoras. Segundo Mary, os capuzes serão usados como efeito de proteção, para cobrir, velar. “Os coturnos, os mesmos usados pelos agentes penitenciários, confeccionados na própria penitenciária, são a busca da dualidade, leveza versus brutalismo. As luvas-protetoras de cortar carne, metal em forma de argolas, lembram tricô, crochê, elos e cadeia. Em tese, aço nas mãos é algema, mas por meio das luvas, aço nas mãos é ofício”.
Os cabelos terão um efeito enovelado, coque emaranhado, arrematado por agulhas de crochê de madeira. Já o make unilateral, meio a meio, tem a intenção de ocultar e revelar, nessa ambiguidade do ser e não ser. “Ao toque, as peças revelam suavidade, languidez e leveza, verdadeiro abraço em quem as vestirá”, finaliza Mary.
Em meio ao casting do desfile, uma surpresa: a detenta Marcella Moreira, de 27 anos, do Complexo Penitenciário Feminino Estevão Pinto. Marcella venceu o concurso Miss Prisional em junho deste ano, o que a elevou a autoestima. “Estou ansiosa com o desfile, pois de certa forma os olhares estarão atentos sobre mim. E também é uma valorização do meu trabalho”.
Selo Social
No dia do desfile da Doisélles será lançado o Selo Social, que certifica que a empresa ou instituição agraciada tem responsabilidade social, sendo parceira do Estado na ressocialização de condenados. Esta é uma iniciativa do Governo de Minas e a Doiséllles é pioneira nesta parceira com os presídios, um incentivo para que outras empresas contratem a mão de obra de detentos e fortaleçam o envolvimento com projetos sociais.
Pinte sua aldeia e seja internacional
Raquell Guimarães se inspira para iniciar uma coleção em músicas; em um texto, livro ou poesia que lê; em um filme que assiste; em um momento que ela vive.“Não tem essa coisa muito objetiva de me inspirar num personagem, não é tão objetivamente cultural, é mais um processo interno meu de comunicação com o que me chega. A cartela de cor principalmente”.
O tricô é a aldeia de Raquell, é a sua Minas Gerais, ele é o feito à mão. E o internacional é a sua experiência enquanto aeromoça, o estudar e viajar por três anos para conhecer o mundo. A partir disso ela deu à Doisélles esse olhar de uma moda contemporânea. “John Galliano conversava muito com a minha “mineirice”, porque eu sou jônica, mas adoro o minimalismo, na hora que eu vou me vestir se eu não tiver um lenço colorido… Eu tenho uma “barroquice” de natureza e eu não fujo dela”.
Para Raquell, a referência do Galliano deu ao seu tricô uma vanguarda. “É uma cultura milenar, rudimentar, uma agulha e um fio passado em volta do pescoço, um processo 100 % manual, mas que tem modelagem de vanguarda. Eu não vou fazer tricô com a cava no lugar, seis botõezinhos de pérola e um punho de sanfona. Esse foi o resultado do meu pinte sua aldeia e seja internacional. Eu levei a minha aldeia, mas eu vivi o mundo para entender como seria a composição desses dois extremos. E quando eu falo de extremo eu falo de prisão e mercado de luxo, porque é um produto que é feito num lugar que vocês nem imaginam o que seja e chega na LECLAIREUR, em Paris, uma das lojas mais importantes de design do mundo. Eu cheguei lá, porque o produto agradou”.
A Doisélles hoje é uma marca economicamente sustentável, porque as coleções envolvem parcerias.
Raquell Guimarães estudou moda em São Paulo, indumentária em Londres e Moulage em Paris. Estagiou figurino e produção com Fernando Torquato. Caiu nas graças da Xuxa, que foi um das primeiras famosas a acreditar no seu talento. E foi lá fora, principalmente depois de fazer grande sucesso em Madri e ver alguém passeando com sua roupa pelas ruas de Amsterdam, que ela começou a acreditar que o que fazia era um produto de qualidade. Então um belo dia foi com uma mala de roupas para a porta da Abit (Associação Brasileira da Indústria Têxtil e de Confecção), participou de uma feira em Paris, agendada pela Associação, e conquistou a cidade luz. Ela investiu muito na técnica para alcançar o resultado que tem hoje.
Após uma matéria produzida por Fernando Gabeira com Raquell, a agência Reuters fez um ensaio fotográfico na Penitenciária Professor Ariosvaldo de Campos Pires e o projeto Flor de Lótus foi parar na capa do Le Monde, The Guardian e a ideia de Raquell passou a ser modelo para outros estados.
Flor de Lótus: Raquell Guimarães procurou a Comissão de Direitos Humanos da Câmara Municipal de Juiz de Fora, que sugeriu que ela começasse um trabalho com vinte detentos. Seria o início do projeto Flor de Lótus, na Penitenciária Professor Ariosvaldo de Campos Pires. Raquell os ensinou a tricotar segundo o padrão que precisava e, em troca, eles recebiam a progressão da pena (um dia de liberdade para cada três trabalhados) e um salário, metade depositada em uma poupança e a outra encaminhada à família. Atualmente, o trabalho de alta costura, 100% feito à mão, é realizado por doisinternos da Penitenciária. O projeto gerou o documentário de média-metragem “Cadeia de Produção”(2012), dirigido por Fernanda Roque e Francisco Franco. O filme mostra o processo de produção dos detentos, junto com Raquell, e conta com depoimentos de importantes parceiros que fizeram e fazem o projeto Flor de Lótus acontecer.